Passava das nove e meia. Tudo que se ouvia era o tic-tac-tic-tac do relógio de parede e um ronco tímido que lembrava aquela leve tremelicada que acomete os celulares quando estão no modo silencioso.
O ronco, na verdade, não era obra de nenhum avanço tecnológico, e sim o lamento cadenciado de estômagos que ainda não tinham recebido a refeição matinal.
– De quem é o dia hoje?
– Da Marta.
– Estranho, ela nunca atrasa.
– Tá com fome também?
– Morrendo.
– Será que aconteceu algo?
– Não, talvez tenha fila na padaria.
– Isso, fé que daqui a pouco ela chega com os pães.
– Tomara.
Mais dez minutos e nada. Os estômagos, impacientes com a demora da Marta, começaram a protestar com mais potência.
Cinco minutos depois chega Marta, sem fôlego e com a sacola de pães na mão.
– Eita! Marta! Finalmente.
– Desculpem o atraso, mas dessa vez o pão atrasou por causa do cachorro.
– Você arranjou um cachorro?
– Mas não era alérgica a pelos, daquelas alergias de ficar cheia de bolinhas pelo corpo?
– Não gente, continuo sem cachorro.
– Um cachorro avançou em você?
– Nossa Marta! Ele te mordeu? Vamos pro hospital agora!
– Você vai ter que tomar umas trinta injeções na barriga mas é pro seu bem.
– Ei, não é nada disso! Ninguém me mordeu.
– Ainda bem.
– Então, eu estava quase chegando na padaria, um pouco antes da porta tem aquele ponto de taxi, sabe?
– Sei.
– Daí, do lado do ponto tinha dois homens…
– Já sei, eles mexeram com você?
– Mas nem pra comprar pão a gente tem sossego…
– Não, deixa eu contar. Tinha dois homens, dois moradores de rua, um mais novo e um mais velho. Os três estavam, como posso dizer…festejando a vida.
– Mas não eram dois?
– Sim, dois homens, um mais novo, um mais velho e uma garrafa de Velho Barreiro.
– …
– Enfim, passei do lado deles e estava quase entrando na padaria quando escutei um ganido. Olhei pro lado e vi um cachorrinho amarrado ao poste, do lado do ponto de taxi.
– Ai que fofo!
– Nem tanto. Pelo que entendi o cachorrinho era dos dois homens do Velho Barreiro. Eles tinham amarrado o cachorro ao poste mas deixaram a corda muito curta. O coitadinho tentava sentar mas era automaticamente enforcado pela corda.
– Que dó.
– Pois é, daí não me aguentei . Fui até os dois e perguntei se o cachorrinho era deles.
– E era?
– Sim, mas antes da resposta recebi uma baforada tão grande de cachaça que a mínima faísca provocaria uma explosão que deixaria o Michael Bay no chinelo.
– Cruzes.
– Tentei explicar que a corda estava enforcando o cachorrinho. Os dois me olharam com aquele olhar perdido de quem não tá entendendo nada, sabe?
– Sei, meu marido faz esse olhar quando digo que é dia de faxina.
– Daí o mais velho foi até o cachorrinho pra me mostrar que a corda em volta do pescoço estava frouxa “viu madame, num tá apertando o pescoço do Bruce”.
– Bruce? O nome do cachorro é uma homenagem ao Bruce Lee?
– Não, Wayne. O nome do cachorro é Bruce Wayne.
– Hahaha, e a identidade secreta dele é o Batman?
– Fiz essa mesma brincadeira com o dono do cachorro. Ele olhou para os lados e fez “psiuuu! Não fale alto! Ele não sabe que a gente sabe ”.
– Se pelo menos fosse um morcego de estimação…
– Expliquei novamente que a corda era muita curta e que o pobre Bruce não conseguia sentar. Depois de me presentear com mais uma baforada de etanol ele disse que tinha amarrado o cachorrinho ao poste para que ele não fugisse para rua e fosse atropelado, mas que ia arrumar a corda. Como já estava atrasada, dei tchau e corri pra padaria.
– E o Bruce ficou bem?
– Ficou. Quando saí da padaria os dois homens estavam sentados na escada , o cachorro do lado deles, sem cordinha.
-Mas não tinha perigo de fugir e ser atropelado?
– Acho que não. Ele estava vestido de Batman.